Rita Ribeiro, natural do Porto, é licenciada em Sociologia das Organizações, Mestre em Antropologia e Doutorada em Sociologia pela UMinho. É professora auxiliar do Departamento de Sociologia, do Instituto de Ciências Sociais desta instituição, desde 1995 onde tem vindo a desenvolver investigação na área da sociologia da cultura e, em particular, no domínio das identidades coletivas, bem como da multiculturalidade e da sociologia do consumo. 

Em 2012 lançou o livro “A Europa na Identidade Nacional”, baseado na sua tese de doutoramento, com o objetivo de compreender como Portugal se posicionou na Europa no último século e meio e também analisar a importância do velho continente para os portugueses. Foi também coautora do livro ”História da Universidade do Minho”, coordenado por Fátima Moura Ferreira,  professora do Departamento de História da UMinho, e lançado em 2014 a propósito da celebração dos 40 anos da instituição. Quisemos conhecer melhor o seu trabalho como docente e investigadora, cujo percurso tem estado sempre ligado a esta academia. 

​Muito do seu trabalho de investigação tem-se debruçado sobre a identidade nacional na sua relação com a Europa. Porquê esta temática? 

Em pouco mais de dez anos, Portugal pôs termo a uma ditadura de quase meio século e uma guerra colonial, fez a descolonização, consolidou um sistema político democrático, lançou as bases para o desenvolvimento do país e aderiu à então Comunidade Económica Europeia. Talvez não tenhamos bem essa noção, mas com a democracia veio uma aceleração histórica extraordinária. Tudo isto tem sido estudado em diversos domínios do conhecimento, mas a forma como nos situamos na Europa e como a Europa se reflecte na identidade dos portugueses não tinha tido a atenção devida nas Ciências Sociais e foi o que procurei fazer.

Uma das conclusões que tirou da sua tese de doutoramento, intitulada “A Europa na Identidade Nacional”, foi que os portugueses se identificam mais com o seu país do que com o continente Europeu. Que visão têm hoje os portugueses sobre a Europa?
O facto de os portugueses se identificarem em primeiro lugar com o seu próprio país não é nenhuma singularidade no contexto europeu. As pertenças nacionais não foram ameaçadas pelo desenvolvimento de novas escalas de pertença, designadamente a europeia. O que acontece é que desde há algumas décadas o projecto de construção europeia vem tecendo um sentido de identidade supranacional, feita de signos próprios e que não concorre com as identidades nacionais, nem tão pouco se lhes sobrepõe. Trata-se antes de uma forma de identificação que é mais ampla do que a nacional, mas também que interage com as pertenças de escala nacional, regional e local. As identidades não são exclusivistas, são de facto construções sociais bastante plásticas que respondem aos contextos, aos tempos e às relações concretas. A identificação dos portugueses com a Europa não deve ser reduzida aos estudos de opinião sobre o assunto, nem deve ser vista apenas pelo ângulo do tempo presente. A história mostra-nos que a relação com o continente foi muito complexa, feita de momentos de afastamento e de aproximação.

Para além de Portugal ser um país geograficamente periférico, houve um claro isolamento histórico perante a Europa que se prolongou durante cinco séculos até ao final do Estado Novo. Que impacto teve este distanciamento na identificação dos portugueses com o velho continente?
É verdade que a expansão marítima iniciada no século XV e os sucessivos impérios e colonizações deslocaram o epicentro dos interesses portugueses para fora do continente europeu. Todavia, Portugal manteve a sua matriz europeia no plano político, cultural, económico, artístico. Ou seja, foi uma história que se desenrolou em dois palcos e onde se jogaram os trunfos de uma forma estratégica, consoante os interesses de cada momento e em movimentos de fechamento e de abertura. Por exemplo, abrimo-nos ao mundo no que se refere ao domínio político e económico de territórios descobertos e conquistados, mas fechamo-nos muito à influência cultural extra-europeia, que chegou à nossa cultura de modo mais oblíquo, escudados pela superioridade civilizacional de que nos julgávamos portadores. Também é importante dizer que o distanciamento dos portugueses reflecte precisamente a sua condição periférica, do mesmo modo que isso acontece, ou aconteceu, com outros países das margens, das penínsulas e das ilhas, que só muito tardiamente começaram a ver-se como parte da Europa de pleno direito, condição que foi sempre indiscutida na Europa Central.

Na sua opinião existe risco da crise económica que vivenciamos levar a uma alteração do sentido de pertença dos portugueses à União Europeia?
Ainda que não disponha de dados empíricos que me permitam afirmá-lo com evidências, creio que, de facto, a crise actual pode mudar o sentido de pertença dos portugueses à UE, mas não de uma forma radical. Por um lado, os portugueses fizeram sempre uma avaliação muito positiva da adesão do país, mas a minha investigação permitiu-me concluir que essa pertença é valorizada por motivos de natureza instrumental, como o apoio dado ao desenvolvimento económico e à estabilidade democrática do país e a ascensão estatutária que representa o país ter lugar no clube restrito dos países mais desenvolvidos do mundo. Dito de outro modo, os portugueses não se sentem europeus primeiramente por se identificarem com o projecto de paz e unidade na Europa, mas querem sentir-se europeus porque isso significa que o país está em rota de convergência com o modelo económico, político e social europeu. Essa foi a grande promessa da Europa, sobretudo para os países do sul e, mais tarde, do leste.
Por outro lado, a crise e, sobretudo, as soluções que se ensaiaram, vieram corroer as esperanças e trair essa promessa. A Europa que resulta da crise é mais desigual, nada preocupada com a convergência dos Estados-membros (excepto nos que aos números de défices e dívidas diz respeito) e cada vez menos democrática na sua lógica de funcionamento e decisão. É muito grande a desilusão quando se percebe que os países não se sentam em igualdade nas mesas de negociação e quando a humilhação e a chantagem são armas políticas para a UE, mas ainda assim, como podemos ver em Portugal e na Grécia, os povos europeus, muito mais do que os seus dirigentes políticos, entendem que não há futuro se os caminhos forem solitários e não se distanciam da UE, mas da linha ideológica ultra-liberal e tecnocrática que a tem dominado – e fazem-no esvaziando o centro político que protagonizou essa visão e refugiando-se nas “políticas patrióticas” de esquerda e de direita.​
Capa da obra.JPGNo seu ponto de vista, que medidas é que podem ser tomadas pelo EU para haver uma maior aproximação e participação dos cidadãos europeus?
Não sendo matéria da minha especialidade, diria que o mais importante é que a Europa refaça o seu modelo político, que assuma a sua democratização como um desígnio vital. Em concreto isto significa que se impeça a opacidade das decisões e a promiscuidade das esferas políticas públicas com interesses económicos privados. Para que serve aos europeus uma entidade que é imbatível a regulamentar as dimensões da fruta e a louça que pode ser usada nas cantinas se é impotente para resolver problemas como o desemprego e a erosão dos serviços públicos? Estes têm sido os motivos principais do afastamento dos cidadãos Em contrapartida, deve ser pensado, debatido e sufragado um modelo federal que acolha a diversidade de que a Europa é feita, dando corpo aos princípios da democracia, da participação, da igualdade, da solidariedade e da subsidiariedade. 
 
No que diz respeito à crise dos refugiad​os e possíveis alterações nas políticas de emigração, o que poderá mudar na denominada identidade   europeia?
A crise dos refugiados está a dilacerar a Europa por pôr a nu o lado negro e falhado do continente. Depois do dominó das crises financeira-económica-     social-política, a crise dos refugiados rasgou definitivamente o papel de cenário do paraíso europeu. Acabaram as fantasias sobre os valores humanistas da Europa, sobre a Europa como guardiã dos direitos humanos, ou melhor, isso ruiu nos púlpitos de Bruxelas, mas felizmente ainda persiste, heroicamente talvez, nas praias gregas e italianas ou, é justo dizer, nos milhares de voluntários que acorrem aos centros de acolhimento em muitos países. Pergunto-me quando foi que começamos a achar normal que a UE seja toda-poderosa e implacável a fazer cumprir memorandos de “ajustamento” e que aceite placidamente que vários Estados-membros se neguem a receber refugiados num esforço conjunto de distribuição do dever  de acolhimento de pessoas perseguidas e em perigo de vida consagrado no direito internacional. Pergunto-me por que ignora as violações do   direitoshumanos e do Estado de Direito na Hungria e na Polónia e quer obrigar a Grécia a cumprir as normas de Schengen, sabendo que isso quer dizer ​que intencionalmente se condenam milhares de pessoas a morrer no Mediterrâneo. De que forma esta situação se reflecte na identidade europeia?  
Desde logo porque a identidade europeia, ao contrário das identidades nacionais, não está ancorada numa etnia, numa língua, numa cultura ou história una, mas resulta sobretudo de um projecto colectivo para o futuro que se acredita fundar-se em coisas que, felizmente já dávamos por adquiridas: direitos humanos, dignidade humana,e que na Europa se foram elevando até ao direito a educação superior, cuidados de saúde de qualidade, liberdades incontestáveis. Sem estes pilares (e alguns outros) a identidade europeia esvazia-se e regressa-se ao cenário estreito dos interesses nacionais, das fronteiras nacionais, exponenciados pela híper-competitividade do tempo actual. O que vemos é o regresso do medo e dos demónios europeus: os extremismos, a intolerância, a indiferença perante o genocídio, a democracia e a liberdade como um luxo. No meio de tudo isto, uns deixam de acreditar numa Europa cada vez mais cínica e outros recuam para a nação, convencidos de que há aí ainda capacidade para resolver os problemas.

Existem também outros domínios sobre o qual faz investigação mais ligados à cultura e identidade local como é o caso do estudo sobre a Festa da Bugiada e Mouriscada , em Valongo. Fale-me um pouco sobre estudo. 
No meu percurso como investigadora, que passou por um Mestrado em Antropologia e que se centra na Sociologia da Cultura, tenho-me interessado pelas manifestações culturais comunitárias. Integrei a equipa que fez a avaliação dos impactos sociais e culturais de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, dedicando-me sobretudo à dimensão comunitária. Este projecto sobre a Festa da Bugiada e Mouriscada resulta da necessidade que os agentes locais nossos parceiros (Casa do Bugio, Câmara Municipal de Valongo e Freguesia de Campo e Sobrado) sentiram de valorizar uma festa com um grande enraizamento local e que constitui um forte elemento identitário na comunidade de Sobrado. Num primeiro momento faremos o registo, descrição e análise exaustiva da festa, que é de grande complexidade e riqueza simbólica, no plano ritual, performativo e estético, com o objectivo de proceder à sua inscrição no Inventário Nacional de Património Cultural Imaterial, criando as bases para um eventual candidatura à lista do património cultural imaterial da UNESCO. É um projecto desenvolvido pelo Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade e que integra investigadores de várias áreas científicas (sociologia, comunicação, antropologia).  

Bugiadas.jpg   Festa da Bugiada e da Mouriscada em S. João de Sobrado, Valongo

Foi também co-autora do livro ”História da Universidade do Minho” lançado a propósito da celebração dos 40 anos da UMinho. Como encarou essa tarefa e o que aprendeu com ela?
Foi o maior desafio da minha vida académica, aquele para que me sentia menos preparada e que, ao mesmo tempo, era como ter a própria casa como objecto de estudo, já sabemos quase tudo, mas falta abrir o sótão. Fazer a história dos 40 anos da Universidade representou uma grande responsabilidade que só me atrevi a aceitar pela equipa excepcional com quem trabalhei, sob a coordenação da minha colega Fátima Ferreira. A obra não vale apenas por si, mas por ter permitido recolher testemunhos fundamentais de quem quotidianamente fez a Universidade, desde os seus reitores a professores, funcionários e alunos, e por ter permitido fazer um ponto de situação do arquivo da instituição. Além disso, o livro tem também uma versão digital que vai sendo alimentada e expandida com documentos e registos vários. O que sublinho nesta obra é que procura ir além da historiografia institucional e do registo de memórias; o nosso desígnio foi pensar a universidade do Minho no cruzamento da história do país, da região e da Europa, compreender como nela se reflectem as transformações que ocorrem ao longo das décadas e como a Universidade é ela própria protagonista e pioneira das mudanças no ensino superior.

Porquê a escolha da Sociologia e da UMinho no seu percurso académico?
A Sociologia vem dos “verdes anos” da adolescênc​ia quando um professor desta disciplina no ensino secundário, Oliveiros Rocha, a quem presto aqui o meu tributo, me ensinou a “decifrar” o mundo com uma chave de interrogação e a desconstruir os mecanismos ideológicos e de reprodução das desigualdades. Para mim, que sou do Porto, a escolha da Universidade do Minho não era a mais óbvia, mas algumas circunstâncias e venturosos acasos trouxeram-me até aqui.

Que importância teve e tem a hoje esta academia na sua vida? Que marcas deixou?
Reporto-me à feliz expressão latina que descreve como uma universidade cultiva, alimenta o espírito dos que nela se formam: alma mater. É verdade que a Universidade me deu forma, me deu uma forma de vida. Quando aqui cheguei a Universidade do Minho tinha 15 anos de actividade, estava ainda a fazer-se e tive a oportunidade de fazer parte desse empreendimento colectivo e de colher ainda algo de precioso do património desta universidade: a visão e interacção matricial dos saberes, a cumplicidade especial entre aqueles que ainda não sabem aonde os leva o caminho e a solidez da tríade da missão académica: ensino, investigação e serviço à comunidade.